Por: Fábio Campelo Teixeira.
O maior truque que o diabo fez foi convencer o mundo de que ele não existia, e a maior artimanha do capitalismo foi convencer a humanidade que não existe outra forma de viver possível fora da sociedade do consumo desenfreado e da desigualdade social.
O chamado “Consenso de Washington” foi uma reunião realizada no início dos anos 90 na capital dos EUA, da qual participaram as lideranças dos principais órgãos monetários internacionais, ou seja, o FMI, o Banco Mundial e o Federal Reserve (o “Banco Central” dos EUA). Dessa reunião saiu o “receituário”, ou seja, o conjunto de normas e ajustes que esses órgãos exigiriam que os países em desenvolvimento seguissem na década seguinte para poder continuar contando com crédito no mercado internacional. Qualquer um que tenha vivido na América Latina dos anos 90 sabe de cor as medidas que constavam nesse receituário (corte de gastos públicos, afrouxamento de leis trabalhistas, desregulamentação econômica, redução dos programas de amparo social, etc.) bem como as consequências advindas dele (recessão, desemprego, estagnação econômica, etc.).
Em pleno caos em decorrência da implosão do bloco socialista, os papas neoliberais acenavam para o novo mercado em potencial, surgido com o fim do muro de Berlim, miragens repletas de visões de riqueza, carros de luxo e fast food, ao mesmo tempo que sinalizavam para os países subdesenvolvidos a futilidade de se insistir em um sistema que estava em ruínas pelo mundo afora. Nos dois casos, o discurso preponderante era o mesmo: não há vida fora do capitalismo liberal.
Pelos dez anos seguintes, o mundo viveu em transe, acreditando nas promessas liberais de que, caso se submetessem agora e adotassem o receituário, embora o presente fosse de crise e privações, o futuro seria brilhante e promissor para todos. A medida que os anos 90 avançavam, a verdade começou a se tornar cada vez mais óbvia para quem quisesse enxergá-la: o receituário somente funcionava para os países desenvolvidos pois, através dele, eles obtinham duas coisas indispensáveis para sua continua expansão econômica:
1)a estagnação das economias em desenvolvimentos, evitando assim a entrada de novos jogadores no concorrido mercado internacional,
2)a abertura total e irrestrita dos mercados emergentes para as suas empresas, sustentando assim o ritmo acelerado de crescimento de suas economias.
No início dos anos 2000, as populações dos países onde o receituário do FMI foi adotado começaram a se revoltar com o contínuo estado de recessão em que viviam e, sentindo-se traídos pelas promessas neoliberais, começaram uma guinada a esquerda, rejeitando o receituário e favorecendo o surgimento de movimentos e governos contrassistêmicos e antiliberais. Acuada, a direita liberal reagiu com fanatismo e violência, agredindo essa movimentação das populações latino-americanas, furiosamente acusando governos legitimamente eleitos de ditaduras (em um arroubo de insânia destra a Veja chegou a comparar o governo de Hugo Chaves a ditadura nazista de Adolf Hitller) e vociferando a plenos pulmões que essa aventura rebelde antiliberal iria terminar em caos e tragédia. Novamente citaram a pujança econômica dos países desenvolvidos como exemplo de sucesso e venderam com mais veemência a ideia de que o receituário era a única forma possível de se atingir tal prosperidade e, novamente, houve quem lhes desse ouvidos e adotassem suas preleções com fanatismo quase religioso.
Então, chegamos ao ano de 2008.
O discurso messiânico do Fundo Monetário Internacional (“O receituário é o caminho, a verdade e a luz”) já havia começado a ruir; adotando medidas econômicas diametralmente opostas ao que preconizava o receituário de Washington, a Malásia começou a apresentar índices invejáveis de crescimento, o Brasil começou a se mostrar mais robusto e menos frágil aos humores do mercado financeiro internacional exatamente quando começou a abandonar a ortodoxia econômica liberal e, finalmente, nem a Venezuela e nem a Bolívia afundaram na latrina de caos econômico que os profetas liberais haviam previsto. O golpe de misericórdia, contudo, ocorreu bem no coração do sistema.
Como disse anteriormente, a primeira década dos anos 2000 foi um período extremamente próspero para os países liberais, com suas economias registrando robustas taxas de crescimento. O que os responsáveis por essas taxas não contavam ao mundo é que essa economia crescia a base de anabolizantes financeiros que patrocinavam um cassino econômico, sustentado fragilmente na concessão de crédito barato a população sem condições de quitar seus débitos. Assim sendo, surge uma economia baseada na especulação e na movimentação virtual de capitais ilusórios entre mercados falsamente estáveis. Não entendeu? Não se preocupe, nem mesmo os “gênios” do mercado financeiro que criaram essa roleta russa compreendem completamente o que aconteceu. O fato é que, como toda bolha capitalista essa também explodiu e arrastou todo o mundo desenvolvido junto com ela para o buraco. Quem escapou razoavelmente ileso? Aqueles que se recusaram a seguir o receituário milagroso do FMI.
Entramos na segunda década do século XXI e, novamente, os profetas do caos preconizam o caos para aqueles que tentam estilos de vida alternativos ao liberalismo e, desse vez, os ataques também vem dosados com ameaças veladas a liberdade de expressão e a privação das liberdades individuais do cidadão caso este ouse viver foram da “proteção” capitalista.
E ai? Vamos tentar algo diferente ou vamos mais uma vez ouvir as vozes que já arrastaram o mundo para a beira do caos em, pelo menos, três ocasiões diferentes (1929, 1974 e 2008)?
Fábio Campelo é historiador.